Empresas perdem sentido e os jornalistas, seus empregos
Escrito por: Carlos Tautz
Fonte: Observatório da Imprensa
Antes de tudo, minha solidariedade às centenas de profissionais
demitidos pelas empresas convencionais de comunicação. E, se isso ajudar
de alguma forma, saibam que suas demissões pouco têm a ver com as
razões apresentadas pelo patronato. Nada de queda de faturamento,
concorrência com a internet, diminuição do número de anunciantes e
leitores etc etc A verdade é outra e discutir alguns de seus aspectos
mais amplos ajuda a entender o cenário em que nos encontramos.
A mais importante razão para o fechamento em massa de postos de
trabalho é o posicionamento político radical da indústria de
comunicação. A maior parte do que se noticia ou se deixa de noticiar
nestes meios, em especial em matéria de política e de economia, está
sujeita a este posicionamento, e não a tradicionais critérios
jornalísticos.
Em grande medida, a informação publicada é um ato de fé e de interesse
corporativo, que se enquadra em um sistema de ideias. Quem lê ou ouve
uma notícia tem de se esforçar para separar o fato objetivo de sua
interpretação ideológica.
Sempre foi assim na América Latina. Na ausência de instituições
político-partidárias capazes de tecer uma narrativa lógica de sua forma
conservadora e reacionária de ver o mundo, entram em ação os
conglomerados de mídia para ocupar esse espaço.
Antes, reuniam-se na Sociedade Interamericana de Imprensa para jogar a
sua parte na Guerra Fria. Agora, organizam-se no Grupo de Diários
Américas para combater os mandatários que sucederam os governos eleitos
na onda neoliberal dos anos 1990. Seus alvos preferidos são os governos
de Argentina, Bolívia, Brasil, Equador, Paraguai (este deposto por uma
articulação em que as empresas de comunicação tiveram papel destacado),
Peru, Venezuela e Uruguai.
Não é de se estranhar, assim, o que revelam pesquisas de confiança do
leitorado. Elas apontam que boa parte do que é publicado vêm rapidamente
deixando de fazer sentido para seus leitores, enfastiados de uma
cobertura que se caracteriza por uma visão pré-concebida da realidade,
recheada de preferências particulares e, muitas vezes, pouco vinculada à
realidade factual.
Outras fontes de informação passam, então, a produzir sentido – como os
inúmeros informativos gratuitos distribuídos pela internet, celulares
etc. Ainda que eventualmente parciais, muitos deles assumem que posição
defendem. Ao contrário da mídia convencional, não se arrogam o status de
oráculo da verdade, de bastiões da informação crível e de guardião das
instituições democráticas.
Blogs, sites e que tais têm seu valor justamente por serem apenas o que
são, como atestam seu crescente impacto informativo. Por que então
optar pela velha mídia convencional ideologizada?
É emblemático – inclusive por razões históricas – que o mais recente
passaralho de grandes proporções ocorra n´O Globo. Ele é uma espécie de
núcleo duro ideológico da holding Globo, a maior de sua área no Brasil,
que por sua vez inspira politicamente os demais grupos do setor. Mais
cedo ou mais tarde, as principais posições políticas do grupo Globo
acabam mimetizadas pelas demais empresas.
É a segunda vez em 2015 (a primeira ocorreu em janeiro) que O Globo
varre de seus quadros, numa onda só, dezenas de profissionais de
imprensa – outras empresas do grupo fizeram o mesmo, mas
dissimuladamente. Somando os dois tisunamis, foram quase 80
profissionais da redação mandados embora.
Os concorrentes miméticos d´O Globo seguem caminho semelhante, às vezes
por razões distintas. No Rio de Janeiro, foi o caso do recentemente
falecido Brasil Econômico, de O Dia e do provedor de acesso à internet
IG, pertencentes à Portugal Telecom (PT). A PT investiu em mídia no
Brasil buscando influência política para operar a telefônica Oi, em que
detém cerca de 30% do capital votante. Sabe-se lá o porquê, a posse dos
veículos de comunicação perdeu sentido para a PT, que não hesitou em
fechar o BE e deixar o tradicionalíssimo O Dia em estado de alerta.
Em um ano, perto de dois mil postos de trabalho de jornalistas foram fechados no Brasil.
Pelo seu peso específico, o grupo Globo – pertencente à família mais
rica do Brasil, segundo a Forbes – é o ator emblemático nesse movimento
de perda de sentido das empresas de comunicação e dois momentos são
particularmente especiais para exemplificar a repulsa à cobertura de O
Globo e a consequente e imediata queda de sua audiência.
O primeiro é a capa do jornal em 17 de outubro de 2013, um dia após a
PM ter desocupado a escadaria da Câmara dos Vereadores do Rio, onde
centenas de manifestantes se reuniam pacificamente havia semanas. O
Globo criminalizou preventivamente e violentamente os manifestantes.
Desconsiderou que, culpados ou não, eles ainda precisariam ser julgados
pela Justiça.
As consequências foram imediatas. Primeiro, repórteres que vão às ruas
cobrir a realidade que a direção do jornal despreza queixaram-se do
tratamento editorial das prisões. As caixas de email da redação foram
entupidas de mensagens reclamando do tratamento dispensado aos
manifestantes (todos foram soltos por falta de provas). E, nos dias
seguintes, multiplicou-se por quase 20 o número médio de pedidos de
cancelamento de assinaturas.
O jornal não reorientou sua cobertura e simplesmente optou por bloquear
os sistemas de recebimento de e-mails e de pedidos de cancelamento.
O segundo momento se deu no início de agosto de 2015.
Um dos herdeiros do grupo Globo, João Roberto Marinho, tomou a
iniciativa de procurar a Dilma e a bancada do PT no Senado para
informar-lhes que o grupo desembarcara da tese do impeachment –
contrariando a verdadeira cruzada pelo impedimento da governante em que
seus veículos, a tevê à frente, estavam empenhados desde a posse até
aquele momento.
Com efeito, viu-se um abrandamento na ferocidade das críticas a Dilma e
ela recebeu generosos minutos no Jornal Nacional para que, pela
primeira vez, pudesse se defender dos ataques que recebia.
As áreas de inteligência do governo federal circularam a informação de
que essa mudança de posição se deve ao fato de a Globo ter sido
escolhida pelos maiores grupos econômicos instalados no Brasil como
porta-voz de uma posição de manutenção da ordem democrática. Eles
possuem interesses valiosíssimos no País e o impedimento de Dilma
poderia afetá-los, em um momento de turbulências internacionais.
Se esta versão se verifica ou não, é outra estória. O fato, objetivo, é
que aconteceram as reuniões em Brasília e Dilma ganhou uma valiosa
trégua capitaneada pelo mais importante grupo de mídia do País.
Assim, do dia para a noite, aquela que era achincalhada pelo noticiário
do grupo Globo transformou-se naquilo que nunca deveria deixar de ter
sido: apenas mais uma governante, cuja administração precisa ser
escrutinada permanentemente por jornalistas, e não o Judas midiático a
quem se imputam de chofre todos os crimes.
Com variações de escala, método e impacto político, situações desse
tipo já ocorreram em muitas outras redações País afora. As maiores
invariavelmente combinam cobertura conservadora com a publicação de
colunistas reacionários e agressivos. Aliás… Quantos colunistas
progressistas publicam na imprensa diária?
A sociedade é plural e tem direito a uma comunicação idem. Se não a
encontra nas fontes convencionais, procura essa pluralidade em outras
fontes.
A segunda grande razão central para o cíclico (e crescente) descarte em
massa de postos de trabalho para jornalistas é a opção de os veículos
de comunicação agigantarem seus departamentos de entretenimento e
transformarem seus veículos noticiosos em meros cadernos divulgadores da
sua própria indústria do lazer.
Entretenimento e relações públicas se disfarçam de jornalismo,
usando-lhe as técnicas e a credibilidade individual de vários
profissionais de imprensa. Vários deles e delas abandonam a redação e
passam a estrelar de reality shows a programas de amenidades. Deixam se
ser ótimos repórteres e se transformaram em apresentadores enfadonhos e
arrogantes.
Jornalistas que insistem em desvelar as relações de poder passam a ser
peças indesejáveis e altamente descartáveis. A extinção de postos de
trabalho integram-se à lógica desse setor de informação-entretenimento
(infotainment, como um teórico estadunindense já chamou).
O próprio jornalismo passa a ser indesejado e inviável, se for
entendido como uma forma de investigação e de vigilância sobre as
relações entre o Estado e as corporações. Dessa maneira, por exemplo,
fica impossível o grupo Globo cobrir as fraudes na CBF. Há décadas,
ambos são sócios nas transmissões de futebol.
Entretanto, por mais sombrios que sejam, esses não são os únicos
futuros possíveis para a nossa profissão. Quem a entende como uma forma
de intervir na realidade tem vários e promissores exemplos alternativos,
mesmo entre as empresas de comunicação que operam rigorosamente dentro
dos limites do mercado de notícias.
Há experiências de organizações de jornalistas independentes – como a
Agência Pública no Brasil e o International Consortiun for
Investigative Journalism nos EUA. Mas, o exemplo ótimo de empresa
jornalística lucrativa e crítica – que vem rapidamente se recuperando de
prejuízos em anos passados e batendo recordes internacionais de
audiência – é o inglês The Guardian.
Não à toa, foi ao Guardian que Edward Snowden denunciou o sistema
mundial de espionagem montada pela NSA estadunidense. O Guardian é uma
prova concreta de que o jornalismo é viável sob qualquer ponto de vista.
A hora da demissão dói tanto que parece que nunca irá acabar. Quanto
mais laços profissionais e de amizade pessoal se criam nos locais de
trabalho, mais dramático e longo é esse momento triste. Para que ele
sirva de lição, precisa ser compreendido como de fato é: não um ponto
final. Mas, um ponto de partida para recriar o sentido do jornalismo e
de jornalistas.